Literatura - 21.O tálamo...

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Sai novamente no descampado da rua. Uma brisa agradável trazia um perfume de flores silvestres. Pelo menos alguma coisa boa tinha naquele lugar indigesto. Um lugar por mais bonito que seja, nunca chega a perfeição se o povo é antipático e hostil, pensei, enquanto ia caminhando devagar e com os ouvidos atentos para alguma pista que surgisse. Continuei andando devagar e com a observação mais apurada do que nunca. A posição do sol indicava que deveria ser por volta das onze horas. Estava esquentando e a dificuldade em andar com o calor aumentava. Começava a sentir uma umidade desagradável em meu pescoço , de suor. Um cão preto, saído de algum lugar,possivelmente da igreja, me localizou de longe e veio em minha direção a toda velocidade sem dar um latido sequer. Por sorte o localizei de longe.Isso dava tempo para tomar uma decisão.Pensei comigo, que esse era perigoso. Sua boca arreganhada deixava aparecer os dentes brancos e ameaçadores que contrastavam com o negror de seu pelos.Não parecia um cão,  mas o diabo em forma de animal. Ajeitei a arma na mão e fiquei de alerta. Tentei me controlar para não tremer. Ninguém chamou a atenção do cachorro, o que me fez entender que possivelmente fosse incentivado por alguém. Quando ele chegou a distância de dois metros, se atirou em direção ao meu pescoço. Em um relance, sai de sua trajetória e ele passou esfregando os pelos em minha cabeça. Aterrisou atras , se perdendo no equilíbrio. Tão logo ele se aprumou,em um redemoinho de poeira, começou a vir em minha direção novamente. Eu já estava com ele na mira. Quando ele se preparava pra outro pulo, uma bala certeira entrou em seu cranio, bem entre os olhos. O bicho nem gemeu e caiu mortinho da silva. Pensei comigo, o quanto estava ficando bom naquilo. Aprendera também a controlar meus nervos de uma forma especial. Com a arma ainda erguida e segurando-a com as duas mãos, dei uma volta completa nos calcanhares, para ver se alguma coisa a mais me ameaçava. Estava disposto a atirar em qualquer coisa que se movesse. Mas tudo voltou ao silêncio anterior. Ninguém apareceu, ou abriu a janela para ver o que tinha acontecido. O cão ficou estendido no chão formando um pequeno monte negro.
                                                                          
Continuei andando e me afastando da igreja. Quase no fim das fileiras de casas no lado direito, por trás delas, vi um homem sentado à sombra de uma generosa árvore. Caminhei os duzentos metros que nos separavam, para conferir. A arma continuava em minha mão. Tinha que estar prevenido para coisas repentinas. Em meu coração, pedia a Deus que o indivíduo fosse quem procurava. No principio não o reconheci. Estava com um aspecto deplorável, semelhante a um mendigo abandonado pelo destino. Sua camisa fina se transformara em um amarelão sujo e rasgado. Sua calça estava aberta na costura em uma das pernas, deixando-a exposta e queimada pelo sol. Com barba crescida e fisionomia amarela de passar fome, formava um quadro deprimente. Imediatamente me acometeu uma grande piedade. Não desejava aquilo para ninguém. Nem para ele. Em sua testa do lado direito um ferimento denunciava uma batida com a cabeça ou uma cacetada que levou de alguém. Naquele lugar pelo que vi, tudo poderia acontecer com estranhos. Cheguei devagar e disse:
----Bom dia... O senhor é destas bandas?----Ele me olhou com ar indiferente e disse, passando a mão no cabelo ensebado.
----Quero água... Tem água aí?----Confirmei pela sua voz que era mesmo quem procurava. Cresceu uma alegria dentro de mim. Afinal , eu conhecia aquele indivíduo há muito tempo.
----Posso arranjar... Mas antes responda.
----O que quer saber?
----Se você é daqui.
----Não... Não sou. Pensam que sou louco porque digo que não me lembro de como aqui apareci. Tenho na memória cenas de uma cidade, de uma casa, que certamente não é aqui... E a água?
Tirei da mochila uma garrafa com água mineral e ofereci. Ele a pegou como se visse algo familiar, tirou a tampa e tomou um gole.
----Eu conheço esta água, não sei de onde.. É muito boa. ----Disse, forçando um sorriso. Logo em seguida, veio se aproximando uma mulher que saiu não sei de onde, com uma bandeja na mão e uma jarra em outra. Chegou devagar,olhando para os lados e para trás, como se estivesse se escondendo de alguém. Com cara de poucas amigas, disse:
----Aqui está seu almoço. ----Na sequência, entregando ao homem a bandeja com um pouco de feijão, arroz e um pedaço de carne frita. Na jarra trazia água. Aristides pegou sem agradecer, e começou a comer imediatamente. Na vontade de ser agradável e esboçando um sorriso, olhei para a mulher que aparentava cinquenta anos, mas tinha a tez toda judiada pela vida agreste. Com os descontos das batalhas,deveria ter o máximo quarenta. Querendo ser simpático pelo ato que ela praticava, disse:
----Que bom que em todas as épocas existem pessoas caritativas como à senhora, que fazem o bem sem olhar a quem. ----Ela sem um mínimo de emoção, olhou para mim e falou como se falasse com uma pedra:
---- Não é certo deixar as pessoas passarem necessidade.---Não desisti e continuei:---Aquela igreja no fim da rua, mora alguém nela?Tem um padre por lá?---Ela de mau grado me respondeu:---Não mora ninguém por lá. Desde que o velho padre morreu, não veio ninguém mais.---Pensei ter ouvido um cachorro la dentro, talvez o mesmo que me atacou depois, antes de chegar aqui.---Insisti.--- A igreja está vazia, ninguém vai lá. Você ouviu o vento.--- O assunto acabou aí. Depois que Aristides comeu e tomou mais um pouco de água, ela pegou a bandeja e a jarra e foi-se embora do mesmo jeito que viera. Indiferente, furtiva e quase invisível. Pensei comigo sobre aquelas pessoas que viviam ali. Eram muito estranhas , embora esta fosse caridosa.
----Então, homem... Quer voltar para casa?
----Que casa?
----A sua casa, na sua cidade, com sua família.
----Você está brincando comigo. Sair daqui como?----Disse ele triste.

----Não estou não... Vim aqui só para buscá-lo, e tenho meios de leva-lo rapidinho de volta.----Um brilho de esperança apareceu em seus olhos, mas logo se desvaneceu,como se eu propusesse fazer algo impossível, em que não acreditava. O sofrimento o tinha deixado descrente.

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