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Todo
o dia passava me controlando para não pular na garganta do
desalmado. Felizmente o meu autocontrole melhorava gradativamente.
Não sem luta. Tomava remédios e treinava métodos para adquirir
tal melhora. Os remédios me deixavam zonzo e acabavam com a libido.
Mas estava começando a dar resultado. Poderia estar fervendo por
dentro tal qual uma chaleira, que a aparência por fora era de
perfeita paz. Mas a paz verdadeira só encontrava em casa nos braços
de Beatriz. Ali chegava quase a esquecer que a vida pode ser um
monstro querendo devorá-lo, se não seguir certos caminhos marcados.
Encostado ao seu corpo macio chegava próximo ao auge da paz e
tranquilidade. Que bom que a tinha para me consolar de outros males.
Com ela, obtinha força para encarar os dias longos e sequenciais que
a minha frente iam surgindo. Nunca comentava com ela os meus
dissabores na empresa. Não queria macular o clima de casa com
acontecimentos externos. Poderia deixá-la insegura e até prejudicar
o nosso relacionamento. Por mim próprio, sabia que nada é agradável
contar problemas aos outros. Principalmente se outro nada pode fazer.
As vezes vinha em minha mente a ideia de estar sendo um tremendo
dependente emocional da esposa. Isso me deixava ainda mais
angustiado, frente aos problemas e temia que se ela faltasse, seria o
meu fim. A vida ia caminhando assim. Até que um dia, surgiu um
boato, rápido como um estopim queimando. Estavam para dispensar uma
boa porcentagem de funcionários. Falavam que até os mais antigos
poderiam ser atingidos. Como atras de todo boato tem um fundo de
verdade, a cada dia que passava vinha mais informação a respeito.
Logo começou a dispensa. O clima ficou tenso , porque era como se os
funcionários fossem sorteados. Tinha gente que na eminência de
perder o emprego, chegava a chorar, dizendo que além de ter
crianças pequenas, tinha comprado uma casa financiada, que estava
inteirinha para ser paga. A gente nada podia fazer a não ser
tentar dar um pouco de força ao indivíduo. Mas estávamos em um
mesmo barco. Um certo dia ensolarado, indiferente aos meus pesares,
me chamaram ao escritório do departamento pessoal. Os colegas de
trabalho ficaram me olhando, tensos, como se fossem os próximos da
fila, enquanto eu saia devagar, para receber a conta. Lembrei dos
tempos de criança, na escola, quando estava na fila para tomar
vacina contra tifo. Era uma angustia só. A injeção era dolorida e
a gente não podia nem fazer careta, porque os colegas estavam de
olho. Fiquei muito apreensivo, mas ao mesmo tempo pensava que certas
coisas estão aquém de nossa vontade e resolução. E talvez
estivesse a frente de uma mudança. Mudanças muitas vezes trazem
coisas boas e más. Temos que nos concentrar nas boas. Como já
disse, era época de crise e a empresa resolveu diminuir gastos,
cortando mão de obra. No mundo empresarial, quando se vislumbra uma
crise, os primeiros gastos a serem cortados são com os funcionários,
embora nem sempre seja o maior gasto que a empresa tem. As listas de
dispensa ninguém via, mas todos sabiam que obviamente eram feitas
pelos encarregados de cada setor. De boca em boca pelos cantos, nos
banheiros, comentava-se sobre a dispensa em plena ação. Os
encarregados lavaram as mãos e passaram a tarefa para os
supervisores. Estes usaram o critério e a oportunidade de colocar
nas listas suas más querências nos primeiros lugares, em vez dos
incapacitados e medíocres. Sem surpresas, fui colocado encabeçando
a lista da seção. Se o sujeito não gostava de mim, fizera o obvio,
pensei. Chegara enfim o grande dia, sem precisar tomar atitudes
drásticas. A felicidade batia em uma porta e a inquietação em
outra. Sairia dali com a imensa satisfação de não voltar mais e de
nunca ver novamente a cara do sujeito. Mas o destino brincalhão iria
nos envolver novamente, no futuro. Com uma indenização razoável,
pretendia montar um negocio qualquer, já que arranjar outro emprego
seria bem difícil. “Não há bem que dure para sempre, nem mal
que nunca se acabe”, diz o dito popular. Era verdade. Fiquei algum
tempo em casa, descansando, fazendo planos e arrumando coisas que não
funcionavam direito. Casa sempre tem coisas que precisam de
arrumação. Nos primeiros dias foi tudo bem, arrumei algumas
torneiras, pintei um armário. Depois de um tempo, percebi que minha
mulher estava ficando ansiosa e deixando transparecer certo
nervosismo, que nunca antes tinha percebido. Dizia ela que a minha
presença constante na casa a perturbava. Para amenizar a situação,
de vez em quando eu saia dar umas voltas. Comecei a frequentar um bar
e a tomar algumas cervejas. Depois de algum tempo conversando com
gente de vários tipos, inclusive bêbados, comprava um jornal e
voltava para casa. Isso estava se tornando uma rotina. Certo dia,
quando voltei, não encontrei Beatriz em casa. Imaginei que saíra
fazer um arranjo rápido e dentro de pouco tempo estaria de volta.
Nosso apartamento era no térreo e embora pequeno, oferecia o
suficiente para nos dois. Tinha sido comprado à duras penas, mas já
estava pago. O prédio era comum e simples. A taxa do condomínio,
razoável. Nosso plano era vendê-lo um dia e comprar uma casa com
quintal, onde poderia ter um pequeno jardim e talvez até uma horta.
Quando ela retornou já era noite e eu estava vendo o jornal
pasteurizado da TV. Nada falei e ela veio justificando, mesmo sem
minha inquisição. Mas percebi pelos muitos anos de convivência que
ela se esforçava para justificar a saída. Meu avô dizia que , para
se conhecer uma pessoa, tem que comerem juntos um saco de sal.
Naquela época um saco de sal pesava trinta quilos. Imaginem algumas
gramas por dia nas refeições, o quanto dura. Parece que eu já
tinha atingido essa medida, pois conhecia muito bem minha mulher.
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