Literatura 2- O tálamo do tempo

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Todo o dia passava me controlando para não pular na garganta do desalmado. Felizmente o meu autocontrole melhorava gradativamente. Não sem luta. Tomava remédios e treinava métodos para adquirir tal melhora. Os remédios me deixavam zonzo e acabavam com a libido. Mas estava começando a dar resultado. Poderia estar fervendo por dentro tal qual uma chaleira, que a aparência por fora era de perfeita paz. Mas a paz verdadeira só encontrava em casa nos braços de Beatriz. Ali chegava quase a esquecer que a vida pode ser um monstro querendo devorá-lo, se não seguir certos caminhos marcados. Encostado ao seu corpo macio chegava próximo ao auge da paz e tranquilidade. Que bom que a tinha para me consolar de outros males. Com ela, obtinha força para encarar os dias longos e sequenciais que a minha frente iam surgindo. Nunca comentava com ela os meus dissabores na empresa. Não queria macular o clima de casa com acontecimentos externos. Poderia deixá-la insegura e até prejudicar o nosso relacionamento. Por mim próprio, sabia que nada é agradável contar problemas aos outros. Principalmente se outro nada pode fazer. As vezes vinha em minha mente a ideia de estar sendo um tremendo dependente emocional da esposa. Isso me deixava ainda mais angustiado, frente aos problemas e temia que se ela faltasse, seria o meu fim. A vida ia caminhando assim. Até que um dia, surgiu um boato, rápido como um estopim queimando. Estavam para dispensar uma boa porcentagem de funcionários. Falavam que até os mais antigos poderiam ser atingidos. Como atras de todo boato tem um fundo de verdade, a cada dia que passava vinha mais informação a respeito. Logo começou a dispensa. O clima ficou tenso , porque era como se os funcionários fossem sorteados. Tinha gente que na eminência de perder o emprego, chegava a chorar, dizendo que além de ter crianças pequenas, tinha comprado uma casa financiada, que estava inteirinha para ser paga. A gente nada podia fazer a não ser tentar dar um pouco de força ao indivíduo. Mas estávamos em um mesmo barco. Um certo dia ensolarado, indiferente aos meus pesares, me chamaram ao escritório do departamento pessoal. Os colegas de trabalho ficaram me olhando, tensos, como se fossem os próximos da fila, enquanto eu saia devagar, para receber a conta. Lembrei dos tempos de criança, na escola, quando estava na fila para tomar vacina contra tifo. Era uma angustia só. A injeção era dolorida e a gente não podia nem fazer careta, porque os colegas estavam de olho. Fiquei muito apreensivo, mas ao mesmo tempo pensava que certas coisas estão aquém de nossa vontade e resolução. E talvez estivesse a frente de uma mudança. Mudanças muitas vezes trazem coisas boas e más. Temos que nos concentrar nas boas. Como já disse, era época de crise e a empresa resolveu diminuir gastos, cortando mão de obra. No mundo empresarial, quando se vislumbra uma crise, os primeiros gastos a serem cortados são com os funcionários, embora nem sempre seja o maior gasto que a empresa tem. As listas de dispensa ninguém via, mas todos sabiam que obviamente eram feitas pelos encarregados de cada setor. De boca em boca pelos cantos, nos banheiros, comentava-se sobre a dispensa em plena ação. Os encarregados lavaram as mãos e passaram a tarefa para os supervisores. Estes usaram o critério e a oportunidade de colocar nas listas suas más querências nos primeiros lugares, em vez dos incapacitados e medíocres. Sem surpresas, fui colocado encabeçando a lista da seção. Se o sujeito não gostava de mim, fizera o obvio, pensei. Chegara enfim o grande dia, sem precisar tomar atitudes drásticas. A felicidade batia em uma porta e a inquietação em outra. Sairia dali com a imensa satisfação de não voltar mais e de nunca ver novamente a cara do sujeito. Mas o destino brincalhão iria nos envolver novamente, no futuro. Com uma indenização razoável, pretendia montar um negocio qualquer, já que arranjar outro emprego seria bem difícil. “Não há bem que dure para sempre, nem mal que nunca se acabe”, diz o dito popular. Era verdade. Fiquei algum tempo em casa, descansando, fazendo planos e arrumando coisas que não funcionavam direito. Casa sempre tem coisas que precisam de arrumação. Nos primeiros dias foi tudo bem, arrumei algumas torneiras, pintei um armário. Depois de um tempo, percebi que minha mulher estava ficando ansiosa e deixando transparecer certo nervosismo, que nunca antes tinha percebido. Dizia ela que a minha presença constante na casa a perturbava. Para amenizar a situação, de vez em quando eu saia dar umas voltas. Comecei a frequentar um bar e a tomar algumas cervejas. Depois de algum tempo conversando com gente de vários tipos, inclusive bêbados, comprava um jornal e voltava para casa. Isso estava se tornando uma rotina. Certo dia, quando voltei, não encontrei Beatriz em casa. Imaginei que saíra fazer um arranjo rápido e dentro de pouco tempo estaria de volta. Nosso apartamento era no térreo e embora pequeno, oferecia o suficiente para nos dois. Tinha sido comprado à duras penas, mas já estava pago. O prédio era comum e simples. A taxa do condomínio, razoável. Nosso plano era vendê-lo um dia e comprar uma casa com quintal, onde poderia ter um pequeno jardim e talvez até uma horta. Quando ela retornou já era noite e eu estava vendo o jornal pasteurizado da TV. Nada falei e ela veio justificando, mesmo sem minha inquisição. Mas percebi pelos muitos anos de convivência que ela se esforçava para justificar a saída. Meu avô dizia que , para se conhecer uma pessoa, tem que comerem juntos um saco de sal. Naquela época um saco de sal pesava trinta quilos. Imaginem algumas gramas por dia nas refeições, o quanto dura. Parece que eu já tinha atingido essa medida, pois conhecia muito bem minha mulher.



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