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Certa
noite, no auge de meu declínio, estava eu estirado junto a um muro,
semimorto, esperando as longas horas se arrastarem e ganhar um pouco
de força para poder andar até minha casa. O frescor da madrugada
não amenizava os meus males, nem meus pensamentos, que ansiavam pela
morte, clamavam por ela. Minha boca estava amarga e a saliva parecia
uma gosma grossa. Se a engolisse poderia correr o risco de me afogar.
Meus pés estavam frios e adormecidos e eu não dava a mínima para
isso. Se ia morrer, tinha que aparecer os sintomas. Quem sabe era
aquele, um deles. No meio daquele transe infindável, apareceu alguém
e falou comigo. No principio fiquei surpreso ao ver que alguém
falava comigo. Bêbados são entes execráveis. Devo ter falado
besteiras, respondendo a coisas que não conseguia entender. Depois,
pela persistência, com muito esforço, notei próximo a mim, um
vulto feminino em meio à penumbra de meus olhos alcoolizados.
Esperava pacientemente que eu tivesse uma reação positiva. Pensando
ser a morte, me apossei do pouco de alegria que ainda restava em meu
espírito e a cumprimentei com fala enrolada e incompreensível.
----Oh,
você e a morte... Que bom que você veio... Estava esperando há um
bom tempo... Vai me levar? Tenho passado o inferno... que maravilha
dar um jeito em minha situação. Pode me levar para qualquer
lugar...ao inferno até. Sabe de uma coisa, o inferno deve ser até
melhor do que estou passando nesta vida ingrata. ---Ouvi uma voz
feminina, suave e clara responder, enquanto se aproximava mais,se
abaixando para falar ao meu ouvido.
----Não
sou a morte... Vim apenas ajudá-lo.
----Eu
acho que não tenho jeito moça. ----Respondi com a língua
enrolada---Sem jeito...Sem jeito, sem solução. Desista.
----Tem
sim, é só reagir. ----Dizendo isso ela me pegou por baixo dos
braços e como se eu fosse uma pena, me levantou.
Em
minha névoa mental, senti aquilo e imaginei que deveria estar bem
magro mesmo, ao perceber ela me erguer daquela forma, lépida e
firme.
----Vamos para casa. ---Disse ela. Na alta madrugada tinha a impressão que eramos somente nos dois, ali na rua deserta. Parece que fui levado para casa, que ficava distante alguns quarteirões, sem tocar os pés no chão. Mas qual é a impressão que pode ter um bêbado, com a memória deturpada pelo álcool e pela fraqueza de ficar sem se alimentar?Chegamos à casinha,não sei como ela abriu a porta e em seguida, me vi deitado de costas em minha cama. Imediatamente ela me despiu com mãos de fada e me levando ao banheiro , me pôs em baixo do chuveiro. Ela coordenava tudo e eu apenas deixava ser conduzido para o caminho da salvação. Tinha me levado para casa de forma rápida e sem perguntar onde era. Quem era ela? Eu, me apoiando com as duas mãos no azulejo, sentia a água quente correr apaziguadora pelos ossos aparentes.As mãos da moça, ágeis e macias , manuseavam o sabonete pelo meu corpo arrebentado. Naquela hora, não era um homem. Estava mais para um verme, sujeito ao bem e ao mal. Veio em minha mente uma pergunta que a muito custo consegui transformar em palavras na minha boca.
----Você
é o meu anjo da guarda, é?----Não sei de onde veio a ideia.
----Veio
me tirar do barco de Caronte?
----Pode
ser. ----Disse ela rápida. Depois do banho, me levou ate a cama.
Afastou-se por algum tempo. Escutei barulho de utensílios na
cozinha, que parecia ser coisa bem distante. Logo ela voltou trazendo
um chá. Ergueu minha cabeça e fez engolir. Não senti gosto, apenas
um calor purificador correndo garganta abaixo. Me senti melhor. Tempo
depois, ela retornou com um mingau. Agora já senti o gosto e o tomei
com boa vontade. O dia começava a dar os primeiros sinais com as
frestas da janela tornado-se visíveis e um pardal do lado de fora
começara a entoar uma sinfonia áspera de uma nota só. Foi aí
que ela me disse:
----Agora
me vou. E lembre-se... Você tem que reagir, você tem que lutar...
Está me entendendo?
----Estou,
mas não se vá. Fique mais um tempo comigo.
----Infelizmente
não vai dar. Deixei comida pronta para você na geladeira. Quando se
levantar, coma de pouco em pouco e devagar. E você tem que me
prometer que vai fazer tudo para mudar sua vida e largar do álcool.
---Eu
prometo. ----Respondi com convicção, mesmo naquela região que o
espírito está meio acordado, meio dormindo. Nesse estado critico,
não vi quando ela se foi. Como uma brisa passageira, sem deixar
rastro nem cheiro ela sumiu. Quando acordei definitivamente, o dia
já estava terminando, mas um faixo de luz amarelada do sol, ainda
atravessava a pequena veneziana do quarto, atingindo a parede do lado
oposto em forma de um pequeno circulo iluminado.
Era
tempo de recomeçar, de reagir... Pensei comigo, com muita má
vontade.
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