Literatura-36. O tálamo...

                                                                                 36
Notei mais um vez que o gavião continuava veraneando no céu azul, dando pios estridentes.Parece que estava me seguindo, pensei. Caminhamos até uma construção enorme, atrás de uma encosta. Ali devia ser o quartel general. Quando cheguei preso  anteriormente, não tinha visto. Pelo lado que entramos não dava ângulo de visão, e também a preocupação com a vida era maior que admirar a paisagem. Entramos em uma sala bem decorada e depois de mais alguns cômodos grandes, chegamos ate uma saleta onde todas usavam uniforme branco como a neve. Me fizeram sentar em uma cadeira especial, que mais lembrava as cadeiras elétricas vista nos filmes. Achei que ali estava o meu fim e protestei, embora sem qualquer possibilidade de mudar o curso da historia. Fiquei mais calmo ao ver que soltaram minhas mãos e não me amarraram a cadeira com aquelas braçadeiras características. Colocaram um capacete redondo cheio de cabos sobre minha cabeça e ligaram alguma coisa, enquanto duas ficavam olhando um monitor. Deviam estar vendo minhas ondas cerebrais. Isso durou alguns minutos e logo me fizeram levantar. Tinham uma cara de aprovação, que entendi ter passado no teste.Na sequência me fizeram deitar em uma especie de tubo enorme. Lembrei dos aparelhos de tomografia computadorizada. Novas medidas foram feitas e anotadas pelas técnicas e depois de alguns minutos me tiraram dali.Depois me levaram para um enorme aposento que parecia mais um palácio, onde antigamente eram celebradas as vitórias nas guerras e praticadas as grandes orgias no império romano. Depois de muitos sinais fiquei entendendo que era para não tentar fugir. Se isso ocorresse, seria morto imediatamente no lado de fora. Percebi que as janelas eram posicionadas altas, para evitar os olhares curiosos, tanto de dentro como de fora. O lugar estava cheio de mulheres, moças e velhas. Todas com saias curtas e blusinhas decotadas que pareciam ser de linho. As cores suaves variavam entre o azul -claro ao verde – mar. As mais velhas tinham as saias mais longas e as cores eram um pouco mais escuras, que dava para serem diferenciadas facilmente. Duas se aproximaram e começaram sem cerimônia a me despir. Depois, com delicadeza me levaram até um belo banheiro, onde me lavaram com jeito e demoradamente. Naquele momento lembrei-me dos tempos de bêbado, quando uma moça me acudiu na minha aflição. Enfim via um pouco de delicadeza naquelas mulheres. Cheguei a imaginar se não tinha morrido em algum momento, sem perceber e agora estava ali no paraíso, usufruindo do doce descanso e do sublime amor de nosso criador. Mas lembrei que uma hora antes estava jogado em um calabouço. O paraíso se desvaneceu como uma fumaça branca de vapor subindo na atmosfera. Voltei a realidade. Afinal,não tinha certeza se as coisas boas por mim praticadas não perdiam para as más. Depois do banho, me vestiram com roupas novas e me puseram para comer, tendo a frente pratos deliciosos e sofisticados. O espanhol tinha rasão. Estava me divertindo. Depois que almocei, outras duas me levaram para um aposento agradável e menor, onde tinha duas camas enfeitadas.Uma era larga tipo “king sise”e outra mais estreita. Começaram a cuidar de minhas unhas. Uma dos pés e outra das mãos. Peguei no sono, enquanto as duas conversavam entre si com risinhos ocasionais ao mesmo tempo que faziam os deveres. Depois das unhas, passaram para o cabelo e por fim fizeram a barba que já estava crescida.Minha cabeça estava turbilhonada e mesmo assim, dormi pela canseira da noite anterior, ou por alguma droga colocada na comida. Eu sou muito desconfiado com as coisas e demoro muito a confiar no ser humano. Mas depois de um tempo as banalidades se tornam sem valor e chega uma hora que o cansaço fala mais alto e somos vencidos. O resto fica em segundo plano. Quando acordei, vi sentadas ao meu lado, duas moças bem bonitas, que não eram as manicures. Estavam quietas, como a velar pelo meu sono inadiável. Abri os olhos e elas me olharam sorrindo. Uma começou a acariciar meu braço enquanto falava coisas intraduzíveis. Pensei que estava com dó de minha pessoa, pela forma com que falava e me tocava. Já era hora do crepúsculo e ainda se ouvia os últimos rumores do dia. Ali ninguém nos incomodava e ocasionalmente se vinha mais alguém era para trazer comida. Comecei a pensar em minha vida e em meu destino incerto e cheio de surpresas. Uma hora estava em uma boa e em outra na pior. Uma existência dura de acostumar, cheia de altos e baixos. Mas tinha consciência que tudo aquilo era passageiro e dentro de um tempo voltaria para a cela fétida. Trouxeram-me o jantar e me regalei com a delicia de pratos saborosos. Depois, resolvi dar umas voltas, mas imediatamente fui advertido que não deveria sair dali. Algo me dizia que tudo aquilo não era coisa boa. Pela janela, subindo em uma banqueta que não melhorou quase nada a visibilidade,entre as dobras da cortina vi parte do lado de fora e constatei que estava bem guardado. Tinha mulheres fardadas a cada dez metros, parecendo que contornavam o prédio. 


A desconfiança me advertia que ficasse atento a tudo, embora estivesse cercado somente de coisas agradáveis. Quando a noite avançou, tingindo de sombras escuras as depressões e tirando o colorido das coisas, um alarme soou incessantemente e todo o lugar ficou agitado. As moças demonstraram medo e se encolheram ao meu lado. Dando sinal para elas ficarem sentadas quietinhas,tentei procurar alguma coisa para subir e espiar a agitação lá fora.A banquetinha não ajudava.Não encontrei algo mais alto. Mas para minha surpresa, mãos firmes me agarraram pelas coxas em um abraço e me ergueram com extrema facilidade, me colocando de cara com o vidro transparente. Dei um sinal a outra para que apagasse a luz por um momento. Do lado de fora acontecia uma correria. Procuravam alguém por todos os lados. Depois que avaliei a situação, bati de leve na cabeça da moça para me por no chão. Ela me colocou suavemente sem o menor esforço. Fiquei abismado com aquilo, mas não era a hora para perguntas. A outra acendeu novamente a luz e tentou me explicar com gestos, que dois, iguais a mim tinham fugido. Lembrei então dos companheiros de cela. Fiquei tranquilo pois imaginava que já estariam longe naquelas horas.Não demorou e entrou duas guardas armadas quase derrubando a porta, revistando todo o aposento. Não nos incomodaram. Queriam somente olhar os cantos e nichos onde pudesse alguém se esconder. Nada encontrando saíram da mesma forma.As duas moças eram muito carinhosas, não sei se pela tarefa ou se fingiam muito bem. Uma delas se destacava mais na espontaneidade e me fazia acreditar que estava fazendo algo deleitoso. Passamos a noite num “thresome“agradável, embora o meu espírito estivesse perturbado. De manhã acordamos enredados como um novelo. Uma estava com a cabeça em meu ombro e uma perna sobre minha barriga. Outra estava com as pernas por baixo das minhas e com a cabeça sobre meu braço esquerdo estirado. Levantei meio dolorido pela carga agradável, mas tinha sonhado que cheguei ao céu, nos poucos momentos de paz que consegui encontrar. Quando uma preocupação nos assola é melhor estar quieto e sozinho. Nada que se tome por empreitada, sairá a contento. Tomamos o café da manhã, os três juntos. As duas eram incansáveis na tarefa de me tornar bem-aventurado. Se fosse outra situação, certamente que seria o maior privilegiado do mundo. Depois do café, bem descansado, comecei a observar o ambiente com mais apuro. Era um quarto com duas janelas acortinadas que impediam de se ver do lado de fora, como já disse. Uma suave brisa fazia as cortinas ondularem numa calmaria pacifica. No piso, tinha um tapete grosso com predominância do vermelho e desenhado com figuras geométricas. As paredes eram pintadas de cores suaves e acolhedoras que inspiravam o descanso. A cama em que estava sentado tinha um colchão moderno, firme e macio. Era um móvel com aparência de antigo, mas bem conservado. Comecei a reparar na outra cama menor, e algo familiar chamou minha atenção em outro lado do aposento. Depois de buscar lembranças e apurar o passado, percebi com uma surpresa enorme, que parecia com a mesma que me levou aquele lugar e muitos outros. Não tinha muita certeza mas era como rever um velho amigo e demorar em conhecê-lo. Estava toda decorada com fitinhas de seda, coladas nas chapas da cabeceira e na dos pés, prendendo rosinhas vermelhas, com colchão alto que tapava sua silhueta que foi o que dificultou o reconhecimento. Disfarçadamente comecei a verificar para confirmar o que eu pensava. Cheguei por perto como se nada quisesse e comecei a verificar o móvel disfarçadamente. O controle estava colocado exatamente no lugar do encaixe da cabeceira. Uma luz de alegria confirmou minhas expectativas. Meu coração disparou. Tinta velha e seca colava a peça no encaixe. Com uma faca do talher do café, comecei a liberar o controle, tirando a tinta grudada, enquanto as moças observavam com atenção, curiosas pelo meu ato estranho. Com jeito, tirei a peça arredondada e liberei a tinta que obstruía as partes do acionamento. As garotas em cima de mim dificultavam minhas manobras, mas não queria magoá-las repelindo-as. Esperava uma situação favorável para experimentar o dispositivo. Deveria estar só sobre a cama, o que era quase impossível acontecer naqueles momentos, com as duas me assediando. Passamos mais o dia todo, confinado naquele ambiente. Embora fosse agradável e a companhia exitante,chega uma hora que a gente quer sair. É o conceito de liberdade que temos. Podemos ficar em casa durante dias sem sair. Nem mesmo ir até a esquina próxima para dar uma olhada. Mas temos em mente que a qualquer minuto do dia ou da noite se resolvermos sair, ninguém nos segura. Já estar preso é outra coisa. Tentei me informar com as moças o quanto de tempo eu ficaria ali com elas. Depois de muitos gestos e sinais descobri que aquele era o ultimo dia de minha permanência naquele ambiente aconchegante. Outro dia bem cedo viriam me buscar. Quando a noite veio novamente, testei a cama. Tiramos os enfeites e a deixamos preparada. Puxei as moças até uma distancia segura e acionei o controle para ver se funcionava. Veio o clarão e ela desapareceu para a minha maior alegria. As duas ficaram assustadas e se afastaram. Chamei de volta e prontamente ela apareceu do nada. Só que estava toda molhada e com as partes baixas sujas de barro. Certamente que aterrizou em um lago ou em um lugar chuvoso. Com a ajuda das moças a enxugamos e limpamos todas as frestas. Enquanto fazíamos o serviço comecei a tentar explicar para elas como aquilo funcionava. Parece que nenhuma delas estava disposta a ir comigo, depois que entenderam. A que me ergueu para olhar a janela , dava sinais de algum interesse. Mas não me convencia. Disse a elas que a viagem seria na próxima madrugada. Então teriam algumas horas para se decidirem. Fiquei com o controle comigo, para maior segurança. A noite caminhava lentamente com o silencio pesado de minha angustia. Queria me libertar daquele lugar a qualquer custo

Nenhum comentário: