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Levantamos
bem cedo e seguimos viagem rumo a oeste. Era o lado da riqueza e da
prosperidade. Tão logo estivéssemos instalados, levaríamos
Valdívia. Ísis levava o caminhão e eu ia atrás com o carro todo
vermelho de poeira da noite anterior. Quando paramos para almoçar em
um posto de estrada, mandei lavar o veiculo para tirar todo vestígio
da viagem funérea. Depois de viajarmos quase duzentos quilômetros
chegamos a uma grande e bela cidade. Antes passamos por varias, as
quais não achamos muito expressivas para se montar um negócio.
Tinha que ser uma cidade ampla para passarmos despercebidos. Já era
a tarde quando paramos em uma grande avenida. Fui até uma banca de
jornal comprar o noticiário local.
Na cabine do caminhão eu e Ísis
estudamos o caderno de imóveis, procurando algo para alugar. Achamos
um que tinha um apartamento na parte de cima em um determinado
bairro. Desci e fui conversar com o dono da banca e tirar algumas
informações. Ele me disse que o bairro era bom, próspero e próximo
do centro da cidade. Disse também que o valor do aluguel estava
razoável. Era tudo que queria saber. Ligamos para a imobiliária e
ficamos de ver o imóvel outro dia de manhã. Essa noite levamos o
caminhão e o carro para um posto de combustível e dormimos na
cabine do caminhão, estacionado em um grande pátio do posto, ao
lado de outros caminhoneiros que levavam o mesmo tipo de vida, que a
gente experimentava provisoriamente. Outro dia à tarde, já
estávamos descarregando as coisas na nova morada. Achei que até
aquele momento, tudo corria até fácil demais. Esperava alguma
dificuldade para nos instalar. Depois de descansar dois dias, fui
levar o caminhão de volta e dar um alô para Valdívia se
providenciar. Isis ficou para arrumar toda aquela parafernália de
móveis e objetos, que nos dois dias não conseguimos por tudo em
ordem.O apartamento em cima do comercio era grande e tinha quatro
quartos , sendo duas suítes. Era o suficiente para duas famílias
pequenas como as nossas. Por algum tempo, Valdívia e a mãe
poderiam morar com a gente. Enquanto ela não chegasse, eu e Isis
tocaríamos a nova loja. Na volta, peguei um ônibus. Viajar de
ônibus tem algumas vantagens: Tem-se um motorista e a viagem é
tranquila, sem preocupações com o trânsito.Mas
como sempre, comigo as coisas aconteciam diferentes, rápidas e sem
esperar. Peguei um lugar justamente ao lado da janela de emergência.
Acima do vidro estava escrito em letras vermelhas as instruções de
como abri-la. Ao lado, uma alavanca também pintada de vermelho com
uma seta desenhada em branco, indicava a posição de movimento para
funcionar o dispositivo. Olhei aquilo meio desconfiado, tendo o
cuidado de não bater na alavanca, por acidente. Imaginava a porta se
abrindo e me jogando para o lado de fora em alta velocidade. Com
algumas paradas, a viagem demorava cerca de três horas. À tarde
estava bonita e os vidros refletiam a luz do sol amenizada pelo
fumê, no lado de dentro. O ar condicionado funcionava a toda e o seu
ruido misturava com o do motor, produzindo uma sonolência gostosa
nos passageiros. No decorrer do percurso , cerca de cinquenta
quilômetros antes do fim da viagem, ao passarmos por uma ponte com
pista dupla, um veiculo que vinha em direção contraria, se perdeu e
deu uma abalroada na lateral do ônibus, fazendo o motorista deste
perder o controle do enorme veículo. As pilastras da ponte foram se
quebrando em uma sequência, como gravetos,com um barulho de
metralhadora. O veiculo despencou pelo ar livre até as águas
escuras de um caudaloso rio, até àquela hora tranquilo e vagaroso.
Entre a gritaria e o mundo virando de cabeça pra baixo, agarrei na
tal alavanca e forcei-a no sentido indicado. Com o ambiente rolando
é muito difícil o posicionamento de saber ao certo onde é pra cima
e onde é pra baixo. Era questão de segundos até o ônibus bater na
água. Dai seria tudo mais difícil. A porta não se abriu. Estava
emperrada. Esperei o baque do veículo na água. Me agarrei na
alavanca com uma mão e com outra na borda do banco, encostando bem o
corpo para ter apoio na batida. O impacto da lataria com a água foi
amenizada porque o ônibus caiu de ponta, batendo primeiro o
para-brisa da frente. O mergulho foi devagar e continuo. Na frente
um monte de gente se esmagava, caindo uns sobre outros. Alguns se
seguravam penduradas nos bancos. Eu fiquei apoiado no banco da frente
enquanto via o nível da água passar pela janela pelo lado de fora.
Dentro de minutos a água estaria entrando. Consequentemente a
escuridão também viria na medida que o veículo afundava. Daí
seria impossível sair, nada enxergando. Eu sabia que se quebrasse o
vidro da janela a água de fora entraria com uma pressão tal que me
levaria junto e perderia totalmente a noção do meu posicionamento.
Teria que esperar o veiculo se encher totalmente para sair. O enorme
caixão desceu até um ponto e depois com a pressão do ar de dentro,
começou a voltar para cima em angulo para frente, ficando por alguns
momentos, flutuando com as rodas para cima. Depois que a água
tomasse conta de todos os espaços vazios, iria para o fundo
definitivamente, se transformando em uma enorme esquife. Eu bem
ciente da posição, quando a água já alcançava minhas narinas,
encolhi as pernas e apliquei um chute com os dois pés no vidro da
janela. Ainda ouvi um barulho surdo e impulsionei com as mãos
apoiadas no banco, meu corpo para fora. Segurando a respiração e
com os olhos bem abertos deixei o corpo sem movimento para sentir
qual era o lado de cima. Tão logo percebi, comecei a nadar rumo à
superfície. Uma mão agarrou o meu tornozelo. Eu num ato de
altruísmo puxei a perna devagar para retirá-lo de dentro também.
Já estava necessitando respirar. Meus pulmões queimavam como
brasa. Continuei subindo e levando comigo a pessoa que me agarrava.
No desespero, ela começou a me escalar segurando com mãos
desesperadas minhas calças, depois meus braços, tirando totalmente
os meus movimentos, dificultando a minha subida. Eu não sabia o
quanto tinha de água sobre a minha cabeça. Poderia ser cinco ou dez
metros de caminho até o ar da vida, lá em cima. Enroscado ali com
o outro, engoli a primeira porção de água. Minha vista já não
via mais nada a certa distância. A água se tornara lamacenta.
Segurei-me até o extremo limite, sabendo que se engolisse mais
água, seria o fim de meus dias sobre a face da terra. Passaram-me
pela mente todas as mulheres que tivera conhecido. Beatriz continuava
linda e charmosa. Elisa também estava muito bonita e sorria para
mim. Joice apareceu em seguida com seus exuberantes vinte anos. Nunca
a vi tão jovem. Depois vi a loira que morava no campo, tentando me
alcançar, com se algo tentasse me levar para longe dela. Somente
Isis não apareceu. Apareceu também o Aristides com um sorriso
malévolo no rosto, como se dissesse: ----Você já era,
subordinado.---- Senti que a morte se aproximava. O individuo
continuava se debatendo agarrado ao meu braço, com mãos de aço,
impedindo a minha subida. No ultimo momento que eu abri a boca para
deixar meus pulmões inundarem totalmente, vendo que a luta era
inglória e já com uma canseira mortal tomando conta do meu corpo,
uma mão tampou-a e em seguida, recebi um beijo carregado de
oxigênio. O ar entrou suave e refrescante como uma brisa de vida. Ao
mesmo tempo outra mão segurava minha camisa e me levava para cima
rapidamente. O que me agarrava o braço parou de se debater, afrouxou
as mãos, mas parece que continuava enroscado. Imaginei ver também
um vulto negro , que girava com bastante agilidade em torno da
gente, distante uns cinco metros, semelhante a um urubu aquático
gigante, esperando a vítima morrer para se banquetear.
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