Literatura-47.O tálamo...

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Levantamos bem cedo e seguimos viagem rumo a oeste. Era o lado da riqueza e da prosperidade. Tão logo estivéssemos instalados, levaríamos Valdívia. Ísis levava o caminhão e eu ia atrás com o carro todo vermelho de poeira da noite anterior. Quando paramos para almoçar em um posto de estrada, mandei lavar o veiculo para tirar todo vestígio da viagem funérea. Depois de viajarmos quase duzentos quilômetros chegamos a uma grande e bela cidade. Antes passamos por varias, as quais não achamos muito expressivas para se montar um negócio. Tinha que ser uma cidade ampla para passarmos despercebidos. Já era a tarde quando paramos em uma grande avenida. Fui até uma banca de jornal comprar o noticiário local.
Na cabine do caminhão eu e Ísis estudamos o caderno de imóveis, procurando algo para alugar. Achamos um que tinha um apartamento na parte de cima em um determinado bairro. Desci e fui conversar com o dono da banca e tirar algumas informações. Ele me disse que o bairro era bom, próspero e próximo do centro da cidade. Disse também que o valor do aluguel estava razoável. Era tudo que queria saber. Ligamos para a imobiliária e ficamos de ver o imóvel outro dia de manhã. Essa noite levamos o caminhão e o carro para um posto de combustível e dormimos na cabine do caminhão, estacionado em um grande pátio do posto, ao lado de outros caminhoneiros que levavam o mesmo tipo de vida, que a gente experimentava provisoriamente. Outro dia à tarde, já estávamos descarregando as coisas na nova morada. Achei que até aquele momento, tudo corria até fácil demais. Esperava alguma dificuldade para nos instalar. Depois de descansar dois dias, fui levar o caminhão de volta e dar um alô para Valdívia se providenciar. Isis ficou para arrumar toda aquela parafernália de móveis e objetos, que nos dois dias não conseguimos por tudo em ordem.O apartamento em cima do comercio era grande e tinha quatro quartos , sendo duas suítes. Era o suficiente para duas famílias pequenas como as nossas. Por algum tempo, Valdívia e a mãe poderiam morar com a gente. Enquanto ela não chegasse, eu e Isis tocaríamos a nova loja. Na volta, peguei um ônibus. Viajar de ônibus tem algumas vantagens: Tem-se um motorista e a viagem é tranquila, sem preocupações com o trânsito.Mas como sempre, comigo as coisas aconteciam diferentes, rápidas e sem esperar. Peguei um lugar justamente ao lado da janela de emergência. Acima do vidro estava escrito em letras vermelhas as instruções de como abri-la. Ao lado, uma alavanca também pintada de vermelho com uma seta desenhada em branco, indicava a posição de movimento para funcionar o dispositivo. Olhei aquilo meio desconfiado, tendo o cuidado de não bater na alavanca, por acidente. Imaginava a porta se abrindo e me jogando para o lado de fora em alta velocidade. Com algumas paradas, a viagem demorava cerca de três horas. À tarde estava bonita e os vidros refletiam a luz do sol amenizada pelo fumê, no lado de dentro. O ar condicionado funcionava a toda e o seu ruido misturava com o do motor, produzindo uma sonolência gostosa nos passageiros. No decorrer do percurso , cerca de cinquenta quilômetros antes do fim da viagem, ao passarmos por uma ponte com pista dupla, um veiculo que vinha em direção contraria, se perdeu e deu uma abalroada na lateral do ônibus, fazendo o motorista deste perder o controle do enorme veículo. As pilastras da ponte foram se quebrando em uma sequência, como gravetos,com um barulho de metralhadora. O veiculo despencou pelo ar livre até as águas escuras de um caudaloso rio, até àquela hora tranquilo e vagaroso. Entre a gritaria e o mundo virando de cabeça pra baixo, agarrei na tal alavanca e forcei-a no sentido indicado. Com o ambiente rolando é muito difícil o posicionamento de saber ao certo onde é pra cima e onde é pra baixo. Era questão de segundos até o ônibus bater na água. Dai seria tudo mais difícil. A porta não se abriu. Estava emperrada. Esperei o baque do veículo na água. Me agarrei na alavanca com uma mão e com outra na borda do banco, encostando bem o corpo para ter apoio na batida. O impacto da lataria com a água foi amenizada porque o ônibus caiu de ponta, batendo primeiro o para-brisa da frente. O mergulho foi devagar e continuo. Na frente um monte de gente se esmagava, caindo uns sobre outros. Alguns se seguravam penduradas nos bancos. Eu fiquei apoiado no banco da frente enquanto via o nível da água passar pela janela pelo lado de fora. Dentro de minutos a água estaria entrando. Consequentemente a escuridão também viria na medida que o veículo afundava. Daí seria impossível sair, nada enxergando. Eu sabia que se quebrasse o vidro da janela a água de fora entraria com uma pressão tal que me levaria junto e perderia totalmente a noção do meu posicionamento. Teria que esperar o veiculo se encher totalmente para sair. O enorme caixão desceu até um ponto e depois com a pressão do ar de dentro, começou a voltar para cima em angulo para frente, ficando por alguns momentos, flutuando com as rodas para cima. Depois que a água tomasse conta de todos os espaços vazios, iria para o fundo definitivamente, se transformando em uma enorme esquife. Eu bem ciente da posição, quando a água já alcançava minhas narinas, encolhi as pernas e apliquei um chute com os dois pés no vidro da janela. Ainda ouvi um barulho surdo e impulsionei com as mãos apoiadas no banco, meu corpo para fora. Segurando a respiração e com os olhos bem abertos deixei o corpo sem movimento para sentir qual era o lado de cima. Tão logo percebi, comecei a nadar rumo à superfície. Uma mão agarrou o meu tornozelo. Eu num ato de altruísmo puxei a perna devagar para retirá-lo de dentro também. Já estava necessitando respirar. Meus pulmões queimavam como brasa. Continuei subindo e levando comigo a pessoa que me agarrava. No desespero, ela começou a me escalar segurando com mãos desesperadas minhas calças, depois meus braços, tirando totalmente os meus movimentos, dificultando a minha subida. Eu não sabia o quanto tinha de água sobre a minha cabeça. Poderia ser cinco ou dez metros de caminho até o ar da vida, lá em cima. Enroscado ali com o outro, engoli a primeira porção de água. Minha vista já não via mais nada a certa distância. A água se tornara lamacenta. Segurei-me até o extremo limite, sabendo que se engolisse mais água, seria o fim de meus dias sobre a face da terra. Passaram-me pela mente todas as mulheres que tivera conhecido. Beatriz continuava linda e charmosa. Elisa também estava muito bonita e sorria para mim. Joice apareceu em seguida com seus exuberantes vinte anos. Nunca a vi tão jovem. Depois vi a loira que morava no campo, tentando me alcançar, com se algo tentasse me levar para longe dela. Somente Isis não apareceu. Apareceu também o Aristides com um sorriso malévolo no rosto, como se dissesse: ----Você já era, subordinado.---- Senti que a morte se aproximava. O individuo continuava se debatendo agarrado ao meu braço, com mãos de aço, impedindo a minha subida. No ultimo momento que eu abri a boca para deixar meus pulmões inundarem totalmente, vendo que a luta era inglória e já com uma canseira mortal tomando conta do meu corpo, uma mão tampou-a e em seguida, recebi um beijo carregado de oxigênio. O ar entrou suave e refrescante como uma brisa de vida. Ao mesmo tempo outra mão segurava minha camisa e me levava para cima rapidamente. O que me agarrava o braço parou de se debater, afrouxou as mãos, mas parece que continuava enroscado. Imaginei ver também um vulto negro , que girava com bastante agilidade em torno da gente, distante uns cinco metros, semelhante a um urubu aquático gigante, esperando a vítima morrer para se banquetear.

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