Literatura-50. O tálamo do tempo

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Às vezes eu me olhava no espelho e via que as rugas iam se acentuando gradativamente. Meu cabelo passava do grisalho para um branco mais acentuado. Meu corpo também já estava mais lento e minha cabeça mais filosófica. Olhava em minha mulher e via que continuava suave e fresca como uma manhã de primavera. Já estava atraindo olhares curiosos quando a gente saia junto. Muitos pensavam que era minha filha e alguns que era até minha neta. Por um lado eu não ligava e ficava até contente com comentários tipo: “Será que ele dá conta” ?Um dia perguntei a ela quanto tempo achava que durava aqui na face da terra.A resposta veio de supetão e sem rodeios:--Minha durabilidade é de duzentos anos,mais ou menos.--E quantos anos você tem?----Perguntei preocupado.--Estou com quarenta e sete. ----Disse, erguendo as sobrancelhas.--Quer dizer então que você vai-me enterrar e ficar por aqui um bom tempo? ----Ela fez cara de choro e me abraçando, disse:--Não quero pensar nisso e muito menos em ficar sem você.--Mas vai acontecer um dia. ----Falei olhando em seus olhos marejados. Senti também uma dor no coração em ver sua tristeza em falar sobre aquilo. Ela apertou-me mais forte, falando baixinho.--O dia em que você se for, eu me desligo para sempre. ----Aquelas palavras me deixaram mais emocionado ainda, mas fiz força para conter a angustia e a bola formando na garganta. Tentei amenizar dizendo que quando eu me fosse ela poderia ficar com tudo e ainda arranjaria um marido mais jovem.---Você se esquece que eu não tenho o espírito das mulheres humanas, querido. ----Disse se afagando mais em meu peito. ----Não estão em meus interesses, bens materiais ou outro homem, além de você.----Perante tal confissão, emudeci, conseguindo somente acariciar sua cabeça de cabelos macios. Nem tentei falar, porque o bloqueio na garganta era total. Nestas horas gostaria que minha vida se prolongasse por mais cem anos para estar ao lado dela todos os dias, por mais tempo. Era definitivamente a mulher de minha vida. Considerava-me o mais privilegiado homem da terra. Acho que era para compensar o passado triste e sofrido. Se morresse dali alguns dias, iria feliz, considerando as contas equilibradas, com o bem recebido, superando o mal do passado. A balança dos sofrimentos e das bem aventuranças , para mim estava no meio, nivelada.
 
                                                               
Certa manha, deixando as duas na loja fui até uma banca de jornal próximo, comprar um matutino. Gostava de ler na parte da manhã enquanto elas conversavam, esperando alguma compradora. A loja, devagar estava se tornando especialidade em calçados femininos. A banca de jornal ficava a três quarteirões da loja. Depois do primeiro, dobrava-se a direita e andava mais dois. O sol estava enchendo todos os espaços de alegria e vida, com sua luz poderosa. Na segunda rua tinha um movimento incomum de carros, por ser uma ligação com a saída da cidade. Ia bem tranquilo pela calçada, quando escutei gritos e um ronco fora do comum, como se um veículo estivesse participando de uma corrida em um autódromo. Houve uma batida seca dez metros atrás. Mal deu tempo de virar, vi um veiculo rodopiando em minha direção. Percebi rapidamente que tinha uma moça a minha frente. No segundo seguinte, ela pulou sobre mim, me jogando com a costa na parede em um nicho da coluna do prédio. Bati com força e senti meu corpo inteiro doer com o impacto. Com ela me apertando na parede, vi que a minha frente escureceu. Era o carro que batia com tudo, deixando eu a moça grudada em um pequeno espaço livre, protegido pela coluna. Mediante tamanho tumulto ainda deu para perceber o corpo da beldade me pressionando com uma maciez tentadora, contra a parede. Totalmente colada em meu corpo, fartos seios me pressionavam em cima no pescoço e em baixo coxas roliças tiravam o movimento de minhas pernas. Uma chuva de pequenas contas cúbicas , atingiu mais ela do que eu. Estava até gostando da posição, embora durasse apenas um minuto. Tão logo as latas se acomodaram tomando a forma da parede, ela me soltou. Dai que a reconheci. Era a Celina novamente me acudindo. Olhei admirado, a bonita amiga, já velha conhecida.--Eta mundo pequeno. Olha nos se encontrando novamente.--Olá PG. Prazer em vê-lo.--O maior prazer foi meu. ----Disse com cara de malicioso. Ela ignorou. ----Vamos até a loja e te sirvo um café.--Obrigada, mas não posso. Tenho outros compromissos.--Puxa vida,parece que nunca podemos conversar a vontade, trocar umas idéias sem que o relógio nos pressione?Pensei que você só cuidava de mim. -----Disse gracejando. Começava a chegar socorro para o acidente. Na verdade, era um foragido da policia que estava ao volante do carro capotado. Parece que estava resolvido o problema dele e da policia, pelo que dava para ver no carro, mais parecido com um pastel na parte do motorista. Eu ainda segurava o braço da moça, como pretexto mais para não deixá-la ir do que para me proteger.--Responda-me então antes de ir, uma questão que me incomoda. ----Disse eu, enquanto era puxado do beco por ela, por cima das ferragens.--Pode falar... -----Disse ela, estando já a uma distancia segura do veículo. Coisas que usam combustíveis costumam explodir sem menos esperar.--Eu queria saber até quando, eu vou ser salvo por você.--Fique tranquilo, que vai durar muito ainda, desde que não procure encrenca. Vai chegar ao mínimo nos noventa.--Há... ----Gritei satisfeito com a resposta. -----Exatamente o que queria saber. Mas eu não procuro encrenca. São elas que se me apresentam. Olha agora por exemplo. E no caso do acidente com o ônibus, também.--Bom.. você tem rasão. Ainda bem que cheguei a tempo.--Cuide-se PG.----Peraí...você não vai sumir de repente sem ao menos se despedir de um velho amigo dependente.--Está bem...Até mais então.----Dizendo isso me deu um abraço, que foi o melhor abraço do mundo , igualando somente com o da minha amada. Por um instante pareceu-me estar no mesmo lugar paradisíaco onde estivera em sonho tempos antes. O seu perfume já conhecido me envolveu deixando minha cabeça além de minha vontade. Se ali ela dissesse:--- Vamos embora comigo--- Creio que não resistiria o convite e largava tudo sem dar explicações. Parece que ela sabia dos efeitos que me causava e deixou o contato mais curto no tempo. Se afastando, deu um chauzinho e em seguida sumiu como se fosse um vapor de água subindo na atmosfera. Lembrei do mito das sereias. Essa se fosse uma, estaria dentro das especificações em atrair os homens. Mas ela era o contrário. Em vez de destruir, salvava.

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