Literatura-8 O tálamo...

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Levantei devagar, fui ao banheiro e com muita dificuldade fiz a barba que estava igual à daqueles lenhadores dos filmes antigos. A fraqueza me dominava quase totalmente. Arrastei-me ate a cozinha, procurando algo para comer. A fome tinha voltado, depois de uma longa ausência. Encontrei algumas bolachas velhas e um leite vencido, além da comida preparada por ela que me esperava na geladeira. Foram bem vindos ao estomago. Voltei para a cama para esperar o alimento agir e me dar mais força. Com a cabeça mais leve e as ideias mais claras, comecei a pensar na moça que me socorreu. Era estranho o jeito de ajuda, sem muita conversa, sem se identificar, embora tudo fosse feito perfeitamente. Lembrei-me do chá e mesmo rebuscando na memória, não me ocorria ter chá na cozinha. Outra coisa que me deixava absorto era a viagem da rua para casa. Devia ser o meu estado degradante, que fazia ver as coisas de um modo diferente. Aquietei-me e logo dormi novamente, até outro dia de manhã. Acordei mais disposto e com os pensamentos mais ágeis. Logo veio a lembrança da moça. Tentei reconstruir seu rosto em minha mente, mas era uma operação impossível. Parece que não tinha visto o seu rosto. Mas tudo isso não importava. O principal foi a atenção que ela me deu.

Levantei-me um pouco mais ágil e fui novamente ate a cozinha. Automaticamente olhei em baixo da pia, onde guardava uma garrafa de conhaque. Peguei-a e abri. Quando senti o cheiro, uma bola subiu de meu estomago e veio parar na garganta, dando uma ânsia descomunal. Como estava de barriga vazia, ficou só nos espasmos. Parece que iria parar de beber, mesmo. O dia estava bonito e claro. Pelo vão do vidro da janela da cozinha, vi um pássaro de peito amarelo pousar no limoeiro. Aquilo mostrou que a vida continuava indiferente a minha pessoa e ao meu estado. Por um momento me senti feliz em poder participar dela. Passado cinco dias, já tinha recuperado minhas forças. Parecia outro homem. A imagem no espelho também melhorou. Tentei algumas vezes tomar um trago, mas o estomago chutava para cima qualquer coisa alcoólica. Pensei ser o chá que a moça me dera alguns dias atrás, que me curara. Comecei a pensar em um plano de vida. Iria procurar algo para fazer. Nos dias seguintes, comecei a procurar um emprego que correspondia ao que eu sabia fazer. Tinha certa experiência em contabilidade, notas fiscais e coisas do ramo. Contatei varias empresas, mas nenhuma deu certo. Procuravam elementos jovens, dinâmicos e agressivos, com curso superior. Eu estava sendo mais uma vitima da discriminação empresarial vigente no país. Um idiota inventou que as pessoas mais velhas são mais improdutivas e vagarosas. Daí os velhos e decrépitos empresários acataram a ideia e a levaram a sério. Em uma empresa, se existisse velho de valor e produtivo, eram somente eles, os donos. Em uma dessas firmas, certa vez, conheci um segurança de meia idade, que me orientou. Ele parecia bem mais velho que eu. Conversando com ele, fiquei sabendo que empresas de segurança não discriminavam os velhos de quarenta anos. Fui ate uma delas e me atenderam muito bem. Fizeram-me participar de um curso de preparação para seguranças. Aprendi a atirar com uma arma,certos golpes de imobilização e outras coisas mais. Logo lá estava eu em pé, no saguão de um banco. Às vezes me mudavam de endereço, o que era bom para mudar a rotina. Depois de algum tempo, fiquei trabalhando somente em um local. O que ganhava não era lá essas coisas, cerca da metade que recebia da empresa anterior, mas para uma pessoa só como eu, dava perfeitamente para ir tocando. O que tinha se passado comigo ficara em minha mente como um pesadelo que perdeu a força com o raiar do dia. De minha ex-mulher lembrava sempre, mas agora com um sentimento mais de pena que de raiva. Certamente que dentro de pouco tempo ela estaria batendo a cabeça pelas paredes da fatalidade. Não via futuro bom para ela, se envolvendo com aquele sujeito. Como era mesmo seu nome? Ah... Era Aristides, “O homem”. Assim era chamado na firma, devido a sua prepotência mesquinha. Coitada da Beatriz, se envolvendo logo com um tipo daquele. Quanto a ele, a pequena chama de meu ódio, não desvanecia. Era acanhada, mas capaz de gerar grandes incêndios. Pequena e inalterável, mesmo fustigada pelos ventos do tempo. As lembranças vinham como se os acontecimentos fossem ontem. Mas isso não atrapalhava em nada minha nova vida.

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