Literatura-46.O tálamo...

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Conseguimos fazer umas manobras e não deixar Valdívia saber do ocorrido. Nessas coisas, quanto menos pessoas envolvidas, melhor. Em seguida dispensamos a empregada, alegando que o serviço já estava quase terminado. Se ela resolvesse entrar no banheiro teríamos dificuldades. Dissemos que aproveitasse o tempo para ir arrumando as coisas em casa. Esperamos chegar à noite para resolvermos o problema com os defuntos. Arranjamos dois sacos plásticos grandes e ensacamos os ex-bandidos. Na semi-escuridão, encostamos o carro atrás do caminhão que permanecia estacionado em frente à loja. Em parte o baú escondia os movimentos de um lado da rua. Se alguém passasse veria que estávamos fazendo horas extras, tirando as últimas coisas do cômodo. Entre essas coisas dois volumes foram diretos para o porta-malas do carro. Minha parceira me deixava cada vez mais surpreendido com suas atitudes certas e precisas. Eu já tinha deixado ela dominar e controlar a situação. Ela agia, eu observava. Fechamos o caminhão e a loja, pegamos o carro e com Ísis no volante seguimos para um lugar ermo. Quando saímos da cidade e entramos em uma estradinha de terra, ela apagou as luzes do carro. A escuridão era total e percebi que ela via cada buraco que aparecia a frente, desviando dele. Depois de uma hora rodando por campos, passando pela frente de sítios e chácaras, beirando rios e cortando plantações de milho, ela parou a beira de um matagal. O carro ficou propositalmente entre o mato e uma fileira de arbustos enormes que o escondiam de olhares curiosos, se alguém passasse na estradinha de terra ao lado. Em silencio desceu do carro e eu a acompanhei. Olhei para o céu e vi a diferença.
 Parecia que ali o número de estrelas era muito maior que na cidade. Não sei onde ela tinha providenciado uma picareta, uma pá e mais dois pares de luvas de borracha. Com a picareta ela foi abrindo rapidamente uma cova, na grama úmida pelo orvalho da noite, na entrada do matagal. Tentei ajudá-la tirando a terra com a pá, mas ela era muito mais rápida que eu, o que me deixava com falta de ar pelo exercício. Em pouco tempo tínhamos um belo buraco de mais de um metro e meio de profundidade. Jogamos os embrulhos dentro e começamos o processo de tampá-lo. De repente ela pegou meu braço para chamar a atenção e com o dedo a frente da boca fez entender que vinha alguém. Puxando-me para traz nos escondemos agachados entre os ramos cheirosos de uma planta. Dali cinco minutos vimos passar um vulto a cavalo. O toque surdo dos cascos na terra ouvia-se de longe, somente atrapalhado pelo tiritar dos grilos. Depois que ela calculou que o individuo estaria bem longe, continuamos com o serviço. Depois de cheio, ela ainda teve o cuidado de replantar a grama original que tinha deixado de lado. Foi até dentro do mato e arrastou um galho seco, colocando-o sobre o local do enterro. Era por volta de vinte horas e no horizonte começava a aparecer o disco prateado da lua cheia. A paisagem foi se transformando em variados tons de cinza. As pedras maiores a beira do caminho refletiam a luz leitosa, podendo ser vistas de longe. Ainda bem que terminamos o serviço antes da claridade. Como se nada tivesse acontecido, ela calmamente dirigindo de volta, olhou para a lua e disse:--Sabia PG, que na minha terra tem duas luas?--Não tive chance de vê-las. Mas parece que a noite lá é bem mais curta que aqui. Reparei nisso quando estava cercado pelos lobos brancos. Os escorpiões são enormes também.--Você viu os lobos? Dizem que só andam a noite. Não podem suportar a claridade do dia, e passam todo ele em cavernas.--É verdade. Quando veio a aurora eles se mandaram.--Você viu escorpiões também?--Sim... Amarelos, maiores que minha mão aberta. Mas meio lentos.--Dizem que são mais perigosos que os lobos. O veneno de um mata uma pessoa em vinte minutos.--Também deu para perceber. Chutei o bicho em cima da matilha e parece que um deles foi picado. Vi-o morto de manhã. Chegamos ao hotelzinho quando já era quase dez da noite. Outro dia pegaríamos o caminhão e iríamos embora sem destino. Tinha que ser assim para ninguém saber. Outros encargos burocráticos seriam resolvidos outro dia.

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