Literatura- 10. O tálamo...

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Como o dinheiro era curto e tinha que fazer muitas contas para conter os gastos, resolvi fazer uma pesquisa nas lojas. A maioria das camas eram fraquinhas. Quanto mais acessíveis ao meu bolso, mais frágeis eram. Para as mais fortonas e bem estruturadas, os preços beiravam as nuvens. Para o que eu ganhava, não dava. Fiquei alguns dias dormindo no chão. Para quem chegou a dormir em paralelepípedos, aquilo era café pequeno. Conversei com a Eliza, mostrando a ela a impossibilidade de adquirir uma cama em curto prazo. Expliquei que as reforçadas, feitas especialmente para aguentar dois cavalos, eram muito caras. Ela riu gostoso e se prontificou a ajudar financeiramente, mas recusei a ajuda... Daí ela me deu uma ideia razoável... Por que eu não dava uma olhada em casas de móveis usados? Às vezes se achava coisa boa, por um bom preço. Comecei meio sem vontade a procurar. No mesmo bairro que morava, achei uma pequena loja, que parecia mais bazar de antiguidades, tudo empoeirado e aglomerado, como um depósito de sucata. Era um labirinto de mesas, armários e baús,um sobre os outros ,que dificultava o acesso ao interior do estabelecimento. O dono era um velho com óculos na ponta do nariz e cara de poucos amigos. Expliquei o que procurava e ele disse que em dois dias chegaria uma cama de ferro.
----Então posso voltar em dois dias?
----Claro... ---Respondeu seriamente---Vou segura-la para o Senhor ---O velho era dessas pessoas de sorriso raro, mas tinha qualquer coisa que nos dava a convicção que era verdadeira. Fui embora, pensando que uma cama de ferro seria ideal, embora devesse pesar horrores. Dali a dois dias voltei a loja. De fato, ele mostrou uma cama de casal, toda em ferro, que parecia ser fundido. Foi tanto pintada no decorrer dos anos que nos esfolados aparecia as varias camadas de pintura com cores variadas. A parte da cabeceira não era alta como as antigas. Uma pessoa deitada de costas alcançava com facilidade toda a parte superior. Considerando a estrutura metálica, o peso do móvel era igual a um de madeira ou até menos. Imaginei que o material fosse oco, igual a um tubo. A parte onde seria o estrado, onde se coloca o colchão, era uma chapa de metal inteiriça, fazendo parte também das vigas que sustentariam uma cama de madeira. Formava uma caixa de dois metros de comprimento, por um e trinta de largura, por vinte centímetros de altura. Na parte de baixo, quatro saliências nos cantos, formavam os pés. Como eu não entendia do assunto, embora dormisse sempre em cima de uma,aceitei a ideia que realmente era uma cama. Futuramente eu diria que era ali no que parecia uma caixa seria o motor ou sistema propulsor que fazia a máquina funcionar. Não tinha jeito de abri-la. Era hermeticamente fechada e dura como um diamante. Bastava notar que embora parecesse velha, não tinha um amassado sequer por pequeno que fosse. O restante parecia comum. A guarda no lado dos pés era baixa, quase rente com o estrado. Na cabeceira tinha um circulo central, apoiado por arcos que saiam tangenciando e ligavam a parte externa. Dentro desse circulo, tinha mais dois círculos menores recortados em partes,terminando em um pequeno central. Parecia um brasão antigo. Gostei da cama pela segurança que ela oferecia e também pelo preço ameno. Comprei-a e já fui fazendo planos para a reforma, nas horas de folga. Pretendia fazer algo bem feito. Depois de lixar muito bem, pintaria com uma tinta especial, para ficar de bom gosto. Depois de quase terminado o serviço, quando Eliza viu, adorou. Ela gostava de coisas artísticas que evocavam antiguidade. Faltava somente a pequena área redonda central, onde era necessária uma atenção mais rigorosa, pelos detalhes incrustados.
----Acha que aguenta nos dois?--- Perguntei, brincando.

----Até três. ---Respondeu com um sorriso malicioso. Por fim comecei a trabalhar na pequena peça circular. Devagar fui removendo a sujeira dos anos, tinta velha e seca. À medida que ia removendo a casca de tinta, ia aparecendo o verdadeiro desenho. Certamente aquilo não era um brasão, como tinha antes pensado. Era na verdade quatro círculos... Um externo fixado em outro maior, que por sua vez era fixo na cama. O ultimo do meio, parecia ser encaixado dentro do outro. Este último tinha em alto relevo um polígono regular, com outro menor inserido dentro. Nas pontas do maior formavam então, outros três. Os lados externos do maior, formavam também, três segmentos circulares, ou meias luas, dentro do circulo. Vieram em minha mente aqueles manipuladores de vídeo game. Estudando um meio para tirar, depois de bem limpo, inseri a ponta de uma faca no risco circundante. Para minha surpresa, a peça saiu suavemente, sem maior esforço. Voltando no lugar novamente notei que uma força magnética de imã a segurava no lugar, semelhante a certas portas de armários, onde um imã a mantém fechada. Tirei-a novamente. Agora ficava mais fácil para completar o serviço na peça. Limpando devagar e manuseando cuidadosamente, vi que dentro dos triângulos havia sinais, estes em baixo relevo. Com a peça na mão, fiquei imaginando como algo encaixado há tanto tempo, poderia sair com tamanha facilidade. 



No encaixe não tinha nem um pequeno vestígio de ferrugem e o metal era cinzento, fosco e bem liso. A peça em minha mão, não era maior que sete centímetros de diâmetro. No triângulo isósceles central, tinha um pequeno círculo e dentro deste, um sinal semelhante a um ponto de interrogação. No triangulo da esquerda tinha um “L” com dois pequenos riscos retos no lado de dentro, parecendo um asterisco. No do direito tinha também um “L”, este com um pequeno quadrado pelo lado de dentro da letra. E no de cima um “C” com um traço dentro. Na meia lua da direita, tinha um “O”, no da esquerda, um “T” invertido e na de baixo outra meia lua bem pequena, com o lado reto para cima. Pressionando um pouco o centro da peça, pensei sentir uma pequena vibração. Quando passei a limpar o lado esquerdo, sem querer, tornei a apertar esta área. Houve instantaneamente um clarão suave no quarto. Por um momento pensei ser um raio, mas o tempo estava firme e claro. Fechei os olhos esperando vir o baque do trovão, mas nada aconteceu. Algo como uma tampa de luz subiu pelas laterais, fechando o circulo pelo outro lado. Digo luz porque parece que atravessou minhas pernas que estavam do lado de fora do móvel. Abri os olhos e estava tudo no lugar, inclusive eu sentado na cama, como antes. A luz azulada voltou a se recolher de onde saíra. Uma atenção mais apurada e verifiquei que não estava em meu quarto, embora parecesse igual. Absorto pela surpresa comecei a reparar nas coisas ao redor. Os moveis eram mais antigos e as coisas pareciam melhores arrumadas, com toalhinhas de enfeite e bibelôs. O ar dali também tinha um aroma suave e gostoso, bem diferente do meu quarto. Novamente fui surpreendido, agora pelo choro de um bebê que estava em um berço próximo. Daí percebi que a cama ficara com um dos pequenos pés enroscado na cortina que cobria o berço. Fiquei desesperado, em uma situação difícil, quando entrou uma jovem e abriu a boca assustada, ensaiando um grito que iria causar certamente o maior escândalo. Até explicar a situação a ela e porque tinha invadido sua casa, certamente a policia já teria me levado e prendido, por invasão de domicílio. Assustado também com a situação, sem perceber,fiz um sinal a ela que se acalmasse e apertei o controle que estava na mão. Veio o clarão fazendo os móveis projetarem sombras rápidas nas paredes e em um segundo eu já não estava mais ali. Agora o lugar era um campo com grama rala e terra vermelha. Um odor de coisa podre veio ate minhas narinas. Eu ainda assustado procurava achar um meio de raciocinar direito e descobrir o que estava acontecendo. Ainda sentado na cama e segurando a pequena peça, veio em minha mente que ali estava minha salvação ou perdição. Tinha plena convicção que não podia largá-la. Mas as circunstâncias não permitiam que o raciocínio tomasse rumos seguros. Um calor pesado e escaldante tomou posse de meu corpo. A principio pensei ser uma febre, mas logo lembrei que febre dava calafrios. Era o próprio lugar que era quente. A uns vinte metros de distância estava uma carcaça de animal, com a grade das costelas expostas ao sol implacável. Veio o pensamento de estar na África, e isso logo se confirmou, quando avistei a certa distância duas enormes onças. Para mim não existe diferença entre leoa e onça. Mas certamente que não gostaria de aprender isso ao vivo. Eu ali no meio do nada, sem proteção alguma, sentado em uma velha cama e exposta às feras. Parecia um quadro surreal. O desespero aumentou, quando percebi que um dos animais me viu e tomava rumo em minha direção medindo os passos, igual a um gato prestes a pular em cima de um pássaro. Afoito, apertei o triângulo de cima da peça, quando a fera já estava correndo para saltar sobre mim. Veio novamente o clarão salvador e em alguns segundos estava em meu quarto novamente. Conferi bem o ambiente antes de relaxar, para não haver engano novamente. Estava aprendendo da pior forma a manusear a pecinha. Era o tal aprendizado sem teoria e sem manual de instruções. Coloquei a peça na cama e me estiquei, procurando mais ar para respirar. Ainda bem que estava em casa novamente. Uma sensação de conforto me invadiu. Depois de respirar algumas vezes profundamente, abri os olhos. Meu coração ainda estava disparado. Uma borboleta amarela alçou voo da cabeceira da cama. Parece que tinha vindo comigo. Senti-me um pouco mais calmo e peguei a peça novamente, com muito jeito pelas laterais. Comecei a analisar, com uma caneta e um papel, fiz esquemas e cálculos para anotar as partes que tinha acionado daquele estranho controle, para não incorrer nos mesmos erros. Saber voltar já sabia o que era uma coisa muito importante. Da próxima vez, a viagem seria mais planejada e estudada. Amarrei na cabeceira uma caderneta de notas e uma caneta.

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