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Levantei
devagar, fui ao banheiro e com muita dificuldade fiz a barba que
estava igual à daqueles lenhadores dos filmes antigos. A fraqueza me
dominava quase totalmente. Arrastei-me ate a cozinha, procurando algo
para comer. A fome tinha voltado, depois de uma longa ausência.
Encontrei algumas bolachas velhas e um leite vencido, além da comida
preparada por ela que me esperava na geladeira. Foram bem vindos ao
estomago. Voltei para a cama para esperar o alimento agir e me dar
mais força. Com a cabeça mais leve e as ideias mais claras, comecei
a pensar na moça que me socorreu. Era estranho o jeito de ajuda, sem
muita conversa, sem se identificar, embora tudo fosse feito
perfeitamente. Lembrei-me do chá e mesmo rebuscando na memória,
não me ocorria ter chá na cozinha. Outra coisa que me deixava
absorto era a viagem da rua para casa. Devia ser o meu estado
degradante, que fazia ver as coisas de um modo diferente. Aquietei-me
e logo dormi novamente, até outro dia de manhã. Acordei mais
disposto e com os pensamentos mais ágeis. Logo veio a lembrança da
moça. Tentei reconstruir seu rosto em minha mente, mas era uma
operação impossível. Parece que não tinha visto o seu rosto. Mas
tudo isso não importava. O principal foi a atenção que ela me
deu.
Levantei-me
um pouco mais ágil e fui novamente ate a cozinha. Automaticamente
olhei em baixo da pia, onde guardava uma garrafa de conhaque.
Peguei-a e abri. Quando senti o cheiro, uma bola subiu de meu
estomago e veio parar na garganta, dando uma ânsia descomunal. Como
estava de barriga vazia, ficou só nos espasmos. Parece que iria
parar de beber, mesmo. O dia estava bonito e claro. Pelo vão do
vidro da janela da cozinha, vi um pássaro de peito amarelo pousar no
limoeiro. Aquilo mostrou que a vida continuava indiferente a minha
pessoa e ao meu estado. Por um momento me senti feliz em poder
participar dela. Passado cinco dias, já tinha recuperado minhas
forças. Parecia outro homem. A imagem no espelho também melhorou.
Tentei algumas vezes tomar um trago, mas o estomago chutava para cima
qualquer coisa alcoólica. Pensei ser o chá que a moça me dera
alguns dias atrás, que me curara. Comecei a pensar em um plano de
vida. Iria procurar algo para fazer. Nos dias seguintes, comecei a
procurar um emprego que correspondia ao que eu sabia fazer. Tinha
certa experiência em contabilidade, notas fiscais e coisas do ramo.
Contatei varias empresas, mas nenhuma deu certo. Procuravam elementos
jovens, dinâmicos e agressivos, com curso superior. Eu estava sendo
mais uma vitima da discriminação empresarial vigente no país. Um
idiota inventou que as pessoas mais velhas são mais improdutivas e
vagarosas. Daí os velhos e decrépitos empresários acataram a
ideia e a levaram a sério. Em uma empresa, se existisse velho de
valor e produtivo, eram somente eles, os donos. Em uma dessas firmas,
certa vez, conheci um segurança de meia idade, que me orientou. Ele
parecia bem mais velho que eu. Conversando com ele, fiquei sabendo
que empresas de segurança não discriminavam os velhos de quarenta
anos. Fui ate uma delas e me atenderam muito bem. Fizeram-me
participar de um curso de preparação para seguranças. Aprendi a
atirar com uma arma,certos golpes de imobilização e outras coisas
mais. Logo lá estava eu em pé, no saguão de um banco. Às vezes
me mudavam de endereço, o que era bom para mudar a rotina. Depois de
algum tempo, fiquei trabalhando somente em um local. O que ganhava
não era lá essas coisas, cerca da metade que recebia da empresa
anterior, mas para uma pessoa só como eu, dava perfeitamente para ir
tocando. O que tinha se passado comigo ficara em minha mente como um
pesadelo que perdeu a força com o raiar do dia. De minha ex-mulher
lembrava sempre, mas agora com um sentimento mais de pena que de
raiva. Certamente que dentro de pouco tempo ela estaria batendo a
cabeça pelas paredes da fatalidade. Não via futuro bom para ela, se
envolvendo com aquele sujeito. Como era mesmo seu nome? Ah... Era
Aristides, “O homem”. Assim era chamado na firma, devido a sua
prepotência mesquinha. Coitada da Beatriz, se envolvendo logo com
um tipo daquele. Quanto a ele, a pequena chama de meu ódio, não
desvanecia. Era acanhada, mas capaz de gerar grandes incêndios.
Pequena e inalterável, mesmo fustigada pelos ventos do tempo. As
lembranças vinham como se os acontecimentos fossem ontem. Mas isso
não atrapalhava em nada minha nova vida.
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