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Despedi-me de Eliza e fiquei com aquela sensação de
que ela em nada acreditou do que falei. Coloquei o bigode postiço,
um chapéu, luvas e uma capa velha. Por sorte, achei as chaves no
paletó do homem, que ficara sobre a cadeira no quarto. Achei uma
carteira com documentos e algum dinheiro. Este passei para o meu
bolso, dando pista de um roubo. Fui até o carro. De fato estava
estacionado no fim do quarteirão. Cheguei devagar e fazendo de conta
que era o dono, coloquei o casaco no banco ao lado e sai dirigindo
rumo a um estacionamento. Alguns quarteirões adiante decidi que o
bom seria deixar o carro no bairro onde o dono morava. Depois de
quinze minutos estava lá. Deixei o veiculo em uma rua sem movimento.
Àquela hora a cidade inteira já dormia. Uma brisa fria e
persistente alisava a madrugada. Deixei as chaves no contacto
,torcendo para que algum ladrão encontrasse, o que para mim tornaria
mais fácil. Na próxima grande avenida, apanhei um dos raros táxis
que circulavam àquela hora e voltei para casa. Tive uma noite mal
dormida e cheia de pesadelos. Via Aristides pendurado em um
precipício, agarrado a minha perna, na eminência de ambos caírem.
Acordei suado e ofegante, com a consciência cada vez mais me
oprimindo. De manhã, vi que estava com olheiras e um aspecto
deplorável, o que me lembrou os tempos de bebida. Fui ao trabalho
mais pela obrigação que pela vontade. À tarde Eliza apareceu
curiosa para saber mais detalhes e como eu estava. Disfarcei a
conversa e continuei deixando os comentários mais pelo lado das
facilidades que o da veracidade. Ela me olhava com ares inquisidores,
como se desconfiasse de algo muito grave. E eu era o culpado por tudo
que tivesse ocorrido de maléfico. Tudo aquilo incentivava minha
consciência a cada vez mais apertar meu espírito no muro da
angustia e do desconforto. Outro dia saiu a noticia nos jornais do
desaparecimento. Tão logo Eliza soube, foi até minha casa para ter
uma conversa seria comigo.
Chegou
com aparência de transtornada e logo percebi que a coisa não iria
ser fácil. Trazia consigo um pequeno livro que depois vi, era de
poesias. Encarou-me seriamente e disse.
----O
que você fez com o sujeito, PG. Você o matou?
----Está
lendo poesias, Eliza?Não a conhecia esse lado. ---Tentei amenizar as
emoções.
----Eu
gosto de poesias... Agora responda a minha pergunta.
----Não...
Não o matei. Quero dizer... Não sei o que houve com ele.
----Tem
que haver uma explicação, e estou aqui para ouvi-la. Lembre-se que
a única pessoa amiga que você tem sou eu. Se mentir para mim, saio
por aquela porta e nunca mais me verá. ----Ela falou de um jeito tão
serio e determinado, que o meu fragilizado ser pediu trégua.
----Sente-se
ai que vou contar toda a historia para você. ----Disse eu pegando o
pequeno livro e abrindo-o aleatoriamente, como que dando um tempo
para estudar as palavras que iria proferir, aparentando muita calma.
Comecei contando a respeito da cama e de suas qualidades mágicas,
das viagens nem sempre bem sucedidas, ate chegar ao personagem que
fizera desaparecer. Eliza a principio fazia uma cara de espanto e à
medida que ia ouvindo abria a boca como se nunca alguém a contasse
semelhante coisa. Quando falei que tinha sumido com Aristides ela
imediatamente protestou:
----Você
disse que nada faria de mal a ele. Faltou com sua palavra.
----Mas
eu nada fiz de mal. Quero dizer... Eu não sei.
----Existe
um jeito de consertar isso? ---Ela perguntou com ar de autoritária.
Nunca a tinha visto com aquela expressão e me pegou como um menino
quando faz uma molecagem e é descoberto.
----Posso
tentar, mas nada garanto. Também estou arrependido.----Tem
ideia para onde o mandou?----Sim...
----Respondi com firmeza----E no sábado volto para procurá-lo.
Preciso ficar de bem comigo mesmo.
----Agora
sim estou conhecendo o verdadeiro PG. Eu sei que você e um homem
bom. Não poderia ter me enganado ----Disse ela fazendo um
afago.----Fiquei um pouco mais calmo e pedi para ela fazer um chá
para nós. Ela foi até a cozinha, remexeu por lá e depois voltou
dizendo,com as duas mãos na cintura :----Só se fizer chá de folhas
de limão ou da grama do seu quintal. Na cozinha não tem nada
parecido.----Lembrei imediatamente da moça que me salvou. Onde ela
teria arrumado o tal chá?----Deixa quieto então.---- Falei meio
desapontado.
---------
Iria
no próximo sábado e assim combinamos que ela estaria por perto para
realizarmos a tarefa que para mim parecia árdua. Não poderia ir
antes pelo meu trabalho. Se Aristides estivesse vivo, não sabia que
o resgate demorou, devido a problemas do sistema que ele mesmo
integrava, onde o homem é sujeito as horas, cartões de ponto e
regras mil. Eliza olhava a cama ainda com descrédito, pensando
talvez que eu tivesse ficado louco. Percebendo os seus pensamentos,
a convidei para uma experiência para comprovar as minhas palavras.
Ela relutante e desconfiada, aceitou. Coloquei-a sentada ao meu
lado, encostada na cabeceira. Acionei o controle para cem anos no
passado. Veio o clarão característico, que eu já estava
acostumado. Em um piscar de olhos estava no mesmo campo onde vinte
anos à frente eu tivera um caso com uma bonita loira. O lugar era de
paz e tranquilidade. Passarinhos faziam festa nas arvores próximas
numa algazarra sem fim, comemorando mais um dia bonito e alegre. A
casa na elevação onde morava a loira ainda não existia. Eliza
agarrou-se a mim, indiferente a paisagem, aterrorizada pela situação
inusitada. Suplicou com veemência e ansiedade, que voltássemos
rapidamente. Vendo sua fisionomia de desespero, fiquei impressionado
com a sua reação e atendi rapidamente. Em segundos estávamos em
meu quarto novamente. Sentia seu coração disparar de encontro com
meu braço. Tentei acalmá-la, dizendo que não era nada de mais o
que tinha acontecido. Corri pegar um copo de água com açúcar para
ela. Depois de algum tempo ela voltou ao normal, mas mesmo assim
ficou assustada com a aventura passada. Achava aquilo muito
perigoso. E de fato era mesmo. Bastava um pequeno erro ou uma saída
para mais longe do veículo, para se perder completamente. A partir
desse dia, nunca mais sequer chegou perto do tálamo. Sentia um
terror inexplicável. As mulheres encaram as coisas de modo diferente
dos homens. São mais precavidas e moderadas. Talvez por isso elas
sempre acabam vivendo mais. Mas com a experiência, ficou
acreditando em tudo que eu dissera. Combinamos que outro dia eu iria
atrás do Aristides. No sábado de manhã, Elisa já estava em casa.
Trazia uma sacola onde tinha leite, alguns pães e vários pacotinhos
de chá.
----Agora
quando você quiser chá , é só preparar.----Disse sorrindo.
----Convém
levar um pouco consigo ,também. O risco é tão grande que poderá
ficar perdido no tempo, daí terá um chazinho para tomar .
Não
dei muita bola para a sua conversa que denunciava um certo
nervosismo. Eu já estava acostumado com a máquina e com as viagens.
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