CONTINUAÇÃO.
Será que, à medida que o pentecostalismo clássico, o novo pentecostalismo
(“neo-pentecostalismo”) e as Igrejas do mesmo tipo adaptam os “pobres”
às exigências do mercado, se estaria não somente diante do “braço
espiritual” do imperialismo norte-americano, mas também do neo-
liberalismo triunfante? A julgar pela “máquina narrativa” do
pentecostalismo, que divulga seu sucesso mundial, e que é dirigida
aos indivíduos (em geral pobres) e não às camadas proletárias enquanto
grupo, ele consegue efetivamente amortecer o choque dos programas
de ajuste estrutural.
E dá aos convertidos o que o Banco Mundial chama de votos, isto é o
empowerment (a outorga de direitos) às mulheres e aos homens, a
confiança em si mesmo e na capacidade de vencer a adversidade!
Permite aos excluídos da sociedade não se deixarem esmagar e
“renascer”. Inebriados pela emoção de cultos exuberantes, os crentes
atravessam, sem protestar, as novas provas a que a globalização
neoliberal os submete.
Com a chave da promessa de um enriquecimento rápido, à imagem
dos pastores que dirigem um 4x4... Dê e Deus lhe dará em dobro!
Emoção ou felicidade ilusória?Como explicar a semelhança desses
cultos no Zimbábue, Costa do Marfim, Bolívia, Brasil, Guatemala e
Haiti? Efeito ou manifestação da globalização?Novo “ópio do povo”?
Convém não esquecer a primeira parte da famosa frase de Marx:
“A religião é o suspiro da criatura oprimida, o calor de um mundo
sem coração, e o espírito das condições sociais das quais se encontra
excluído o espírito.”
Nessa perspectiva, é preciso ver que tanto o catolicismo quanto o
protestantismo histórico passaram, nos últimos séculos, por uma
crescente racionalização, um desencanto, a que Marcel Gauchet
chama “uma saída da religião”, já não oferecendo o calor nem o
consolo. Ora, em contrapartida, novas necessidades religiosas
afirmam-se no mundo contemporâneo: necessidade de emoção,
do sagrado (principalmente pelo surgimento de forças aterrorizantes),
de participação.
Na América Latina, o pentecostalismo retoma a devoção e o misticismo
popular bastante difundidos no século XIX, expressão popular “pagã”
que a Igreja católica pretendeu disciplinar, a partir do último terço do
século em questão, pelo chamado processo de “romanização”.
Na África, o pentecostalismo alia-se ao profecismo – ao mesmo tempo
abertura e resistência. Diante do crescimento da racionalização e da
“virtualização”, os oprimidos do mundo reivindicam o calor da emoção
e o sentimento de estar junto; buscam cenários que atestem a atrocidade
do mal que os oprime, encontrando nisso um sentido do sagrado.
Felicidade ilusória? Muitas vezes, eles se convencem que a ilusão se
encontra do lado dos que, não sem irresponsabilidade, prometem
revoluções que acabam por oprimi-los ainda mais. A fantasia de ganhar
na loteria .Há um elemento de realidade na opinião obsessiva de que as
Igrejas pentecostais constituem o “braço espiritual” do imperialismo
norte-americano.
A “máquina narrativa” do pentecostalismo é dirigida aos indivíduos e
não mobiliza camadas sociais. Ao mesmo tempo que mulheres e homens
são separados, vivem em um universo holístico onde tudo está em tudo.
Impregnados de uma cultura mediúnica – crêem na presença de
espíritos –, continuam a se sentir próximos da natureza e de sua
comunidade, que tentam recriar quando se desintegra. Em lugar algum
o holístico se manifesta melhor do que no que se denomina de “cura divina”.
Uma nova abordagem para cada indivíduo de seu corpo, de sua relação
com os outros, de suas necessidades espirituais, a “cura divina” não
significa uma simples mudança de estado psicológico: ela é uma
regeneração. Ela é conseguida por um “novo nascimento” (born again),
uma maneira de o indivíduo se reencontrar, mas também de a comunidade
se reconciliar. A transição da África do Sul para uma nova sociedade –
ainda que falte fazer tudo no plano das desigualdades econômicas (cada
vez mais explosivas) – fez-se por meio dessa concepção de “cura” típica
do cristianismo sul-africano.
Os pentecostais irritam espontaneamente os intelectuais. Para estes, o
misticismo não passa de gestos grotescos, e os fiéis, crentes atrasados
e mesmo oportunistas. Os pentecostais pregam a hipermodernidade
(principalmente por meio de redes transnacionais e pelo uso dos meios
de comunicação) mas, ao mesmo tempo, parecem atrasados pela crença
nos maus espíritos (transfigurados em manifestações de Satã). Mostram-se
muito rigorosos (proibição de álcool, tabaco, sexualidade muito restrita etc.)
e ao mesmo tempo carnais (às vezes, os cultos assemelham-se
razoavelmente a balés sensuais).
Reivindicam a aplicação literal da Bíblia, adaptada à experiência de cada um.
Apoiada em uma leitura literal sobre a prosperidade de Abraão abençoada
por Deus, a “teologia da prosperidade”, por exemplo, apresenta-se como
a expressão da fantasia popular de ganhar na loteria; ao mesmo tempo, é
a afirmação de um direito, o de escapar à humilhação, à miséria e à
dependência. Dedicando-se a Cristo, o crente transforma-se em “vencedor”.
Pregando a “guerra espiritual”A “máquina narrativa” do pentecostalismo é
dirigida a indivíduos: mulheres e homens vivem em um universo holístico
onde tudo está em tudo Esta adaptação irrestrita aos sinais da globalização
irritou durante muito tempo os antropólogos. Envoltos na autenticidade
africana, os africanistas em particular negligenciaram esse fenômeno
“americano”. Foi preciso que a jovem geração de antropólogos, sociólogos
e cientistas políticos (muitas vezes britânicos e franceses) se interessasse
pelo assunto para que o fenômeno começasse a ser estudado.
Na América Latina, brasileiros, chilenos e argentinos começaram antes,
de forma que o fenômeno é hoje melhor conhecido. A cultura do “mau gosto”
e o estilo “supermercado da fé” do pentecostalismo, atualmente já são
aceitos sem muito juízo de valor. Quer se goste ou não, percebe-se que se
trata de uma expressão da cultura popular. Uma cultura que não quer ficar
longe do que se passa no mundo – antes, uma cultura de retiro e de refúgio,
o pentecostalismo tornou-se uma cultura de adaptação – mas que não
renega suas tradições, muitas vezes vistas de fora como superstições.
O fenômeno espalha-se por todos os cantos do mundo. Fala-se muito de seu
desenvolvimento na Ásia (mesmo na China ), mas os estudos são ainda
pouco numerosos . Ele é vivido como uma guerra total. “A década de 90
será definitivamente testemunha da guerra espiritual mais intensa que a
Igreja terá conhecido em 2000 anos de história”, ensina-se nas escolas
bíblicas. “Não há zona desmilitarizada!” Os mesmos rituais se observam
por toda parte, o mesmo uso da mídia, as mesmas “máquinas narrativas”.
Reproduzindo a ideologia dominanteA cultura do “mau gosto” e o estilo
“supermercado da fé” do pentecostalismo, atualmente já são aceitos sem
muito juízo de valor ou preconceito
No entanto, essa padronização está longe de nivelar as culturas. Ela é como
a “chave inglesa”, que permite apertar os parafusos de formas sempre
diferentes. É universal no sentido de que não respeita fronteiras. Mas, uma
vez apertados os parafusos, novas configurações surgem. Às vezes,
identidades afirmam-se mais restritas que as identidades nacionais, sem
serem étnicas, mas freqüentemente são maiores que as fronteiras.
O mais curioso é que não se trata aqui de uma geopolítica conduzida de
cima para baixo (há milhares de denominações e mesmo as mais
importantes são muito descentralizadas), mas de uma geopolítica
conduzida a partir de baixo, por pequenos pastores “de pés descalços”
(que tentam simplesmente, ampliando as relações com outros países,
obter o respeito de sua família e de seus vizinhos).
Em sua convicção da “cura divina”, os crentes inventam uma nova
cultura em lugarejos abandonados, em todos os sentidos (inclusive no
plano dos cuidados com a saúde). Pode-se muito bem falar de cultura
popular, exceto de que ela não é reconhecida como tal pelas elites
intelectuais. Mas trata-se de uma cultura de resistência que reproduz,
sem o saber, a ideologia dominante. Neste sentido, o pentecostalismo é
mesmo o novo ópio do povo. Assim mesmo, é preciso lembrar o contexto
em que Marx utilizou a expressão: é a emoção em um mundo sem coração.
.(Trad.: Marinilzes Mello)
1 - Ler, de Bruno Fouchereau, “O cavalo de Tróia norte-americano”, Le
Monde diplomatique, maio de 2001.
2 - Ler, de Ruth Marshall-Fratani, “
Prospérité miraculeuse: Pasteurs pentecôtistes et argent de Dieu au Nigéria”
, Politique africaine, n° 82, Karthala, Paris, junho de 2001, pp. 24-44.
3-Ler “Lavage de cerveaux”, dossiê de Marc Vanwesse, no Suplemento do jornal
Soir (Bruxelas), de 7 de setembro de 2001.
4 - Le Monde, 22 de fevereiro de
2001.
5 - Ler, de Walter Hollenweger, Cahiers de l’IRP, n° 39, Universidade
de Lausanne, abril de 2001.
6 - De acordo com esta última orientação doutrinária, Deus nunca abandonou Israel.
7 - Ler, de Jean-Paul Willaime, “Les définitions
sociologiques de la secte”, Les “sectes” et le droit en France, org. Francis Messner,
ed. Presses Universitaires de France, Paris, 1999, pp. 21-46. Ler também, de
Danièle Hervieu-Léger, La religion en miettes ou la question des sectes, ed.
Calmann-Lévy, Paris, 2001.
8 - Ler Between Babel and Pentecost: Transnational
Pentecostalism in Africa and Latin América, org. André Corten e Ruth
Marshall-Fratani, ed. Hurst Publisher/ Indiana University Press, Londres/
Bloomington, 2001.
9 - Ler, de David Stoll, Is Latin America Turning
Protestant? The Politics of Evangelical Growth, ed. University of California
Press, Berkeley, 1990. David Stoll distinguiu-se ainda no ano passado devido
a uma polêmica (bastante contestável) sobre a biografia da vencedora do
prêmio Nobel da Paz, a guatemalteca Rigoberta Menchu.
10 - Ler, de David
Martin, Tongues of Fire: The Explosion of Protestantism in Latin América,
ed. Blackwell, Oxford, 1990.
11 - Ler, de Paul Gifford, “The Complex Provenance
of Some Elements of African Pentecostal Theology”, Between Babel..., org. André
Corten e Ruth Marshall-Fratani, pp. 62-79.
12 - Ler, de Jean-Pierre Bastian, in
André e Mary Corten (ed.), Imaginaires politiques e pentecostismes: Afrique/
Amerique Latine, Karthala, Paris, 2001. p.220.
13 - Quando se trata da China,
os índices são dotados de um coeficiente inflacionário: 60 milhões, afirma-se,
em certos meios evangélicos. Convention Globale du pentecôtisme, Los Angeles,
maio de 2001.
14 - Pau, Freston. Evangelicals in Latin America, Asia and Latin
América, ed. Cambridge University Press, 2001.
http://diplo.uol.com.br/2001-12,a160
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